O ano era 1989. Eu trabalhava em
um bar no centro de Barueri, mais precisamente, no bar do Rodolfo, que tinha
herdado o negócio do pai. No centro, todos conheciam o comércio como “o bar dos
italianos”.
Eu fizera uma espécie de
arrendamento onde a administração era minha, porém, não era proprietário do
negócio. Assim tinha uma participação nos lucros. Já era cliente antes de
assumir o bar (fato que ocorreria outras duas vezes na vida) e conhecia bem a
clientela.
O local era pequeno, mas abrigava um parque de diversões para
aqueles senhores aposentados que passavam a maior parte do dia na jogatina:
Bilhar, truco, caxeta e toda a sorte de jogos de lógica e pegadinhas. Havia também um público flutuante que
frequentava o local para “tomar uma para abrir o apetite (tem uns que tem o
apetite difícil de abrir...)”, jogar um pouco ou bater papo.
Dentre os frequentadores,
gostaria de destacar três:
Benedito Adherbal Farbo –
advogado da câmara, Nini, como era conhecido, costumava passar no local pela
manhã, na hora do almoço e entrava na jogatina após o serviço. Tinha currículo
extenso: vereador, fundador e proprietário do Jornal D’Oeste, poeta, ator,
promotor cultural, fundador do carnaval de rua da cidade, fundador do grupo
TEMPO (teatro, música e poesia), tinha 3 livros publicados (sobre a cidade de
Barueri), disco gravado (com poesia), mas era, fundamentalmente, um tirador de
sarro. O maior que já conheci.
Sr. Silvério – aposentado. De
mente aguda e olhos sempre atentos, Silvério, não perdia nenhum detalhe. Fora
secretário municipal na gestão de Guilherme Guglielmo, o Perereca, e um dos
responsáveis pela isenção de impostos às empresas que se instalassem no recente
bairro de Alphaville. Era o mais erudito. Tocava piano e contava as histórias das
óperas e clássicos que colocava para tocar no gravador do bar (ele trazia as
fitas gravadas), sob protesto da
maioria.
Armando Torloni – engenheiro –
Trabalha em uma empresa na Chácara Marco (que a Benfica insiste em chamar de
Marcos) e começou a frequentar o local na hora do almoço. Tomava uma ou
duas aguardentes com “uma triscadinha de Cynar para dar cor”. Era muito
refinado, na sua simplicidade. Usava corretamente as palavras e falava
pausadamente. Dizia-se tio da atriz global Cristiane Torloni.
Não sei quem apareceu com um jogo de palavras que era muito instrutivo, além de ser uma
espécie de xadrez de palavras misturado com truco. Creio que o responsável foi o Nini . O fato é que começamos a jogar diariamente. Eu, o Nini e o Silvério.
Ríamos muito com as “fechadas de palavras” que dávamos. Nossa diversão chamou a atenção do Armando
que, rapidamente, se juntou ao grupo.
Silvério trouxe um dicionário
Lello para dirimir as dúvidas quando as palavras fugiam do vocabulário usual (o
que era corriqueiro). Eu comecei a buscar, escondido, palavras “esdrúluxas”
para enriquecer meu vocabulário e me armar para as batalhas.
Passaram-se semanas e o jogo foi
perdendo a graça. Pelo excesso. Silvério foi o primeiro que abandonou o jogo,
tornando-se observador. Logo depois, Nini resolveu trocá-lo, ora pelo carteado,
ora pela sinuca.
Na mão contrária, Armando começou
a ficar cada vez mais no bar. Primeiro, começou a estender o horário de almoço,
depois, passou a chegar no bar pela manhã e só ia trabalhar depois do almoço.
Eu estava ficando preocupado com
ele. Pensava: “Tem mais de 60 anos, se perder o emprego é difícil arranjar
outro...”. Não obstante, também estava me enchendo de jogar. Comecei a inventar
desculpas ou fazer parceria para alguém que estava querendo jogar sinuca e não
tinha adversário (é comum donos de bares fazerem esse “sacrifício” pelo
freguês). Armando, recostado no balcão, com voz súplica, pedia para que eu
jogasse dali mesmo. Ficava com dó dele e acabava jogando. Ele anotando no papel
e eu formando a palavra na minha cabeça, enquanto dava minhas tacadas.
Acabei por sair do bar. Nini, meu
guru em sacanear pessoas, faleceu alguns anos depois. Silvério, hoje com quase 90
anos, não sai mais de casa. Umas semanas atrás, eu tive a grata surpresa de
incluí-lo como amigo no Facebook (!). O incentivo foi de sua neta que é minha
amiga e fizemos peças de teatro juntos.
Armando sumiu. Nunca mais tive
notícias.
Uns quinze anos depois, no Cyber
bar (que eu viria a ser sócio – é um vício, meu), de propriedade da Keia Mendes,
ressuscitei o jogo. O bar era uma Lan
house e casa noturna que tinha seu maior movimento nos finais de semana.
Nessa época, eu e meus amigos
Marcelo Arruda, César Mello, Aluísio Reis e Rui Ricardo fazíamos uma espécie de
Sarau mensal denominado Noite na Taverna. Quando o “Noite” começou, era apresentado
em outro bar, que acabou fechando e a Keia acolheu o evento no seu bar.
Como estávamos muito empolgados dedicávamos muita atenção e esforço ao evento. Criamos o Manifesto do Noite
na Taverna e a Canção da Taverna. E, como o jogo de palavras (do Nini) não
tinha nome, foi batizado de Jogo da Taverna. E faz todo sentido chamá-lo
assim, afinal, é um jogo de bar.
Enfim, para jogá-lo é simples:
Precisa de:
·
Uma caneta
·
Uma folha de papel
·
Dois jogadores ou mais. Quanto mais, melhor.
O jogo é
iniciado quando um dos jogadores escreve uma letra em um papel. O jogador
seguinte coloca outra e assim por diante. Pode-se colocar letras à esquerda ou
à direita. O objetivo é NÃO FORMAR A PALAVRA. Quem a formar, perde.
Cada mão vale
um ponto negativo ao perdedor. Se houver impugnação, o perdedor perde 2 pontos.
Quem tiver mais pontos negativos perde o jogo. Deve ser combinada a pontuação
final no início do jogo. Só valem palavras da língua portuguesa (pode-se
incluir outras línguas, claro). Não valem diminutivos, aumentativos ou nomes
próprios (para não empobrecer o jogo). O dicionário diz a palavra final nas
contendas.
Exemplo, com
três jogadores:
Jogador A
coloca a letra M:
M
O jogador B
coloca a letra A à esquerda:
AM
Se o jogador C
colocar a letra A à direita ele forma a palavra AMA e perde à mão. Então ele
resolve colocar um T depois do M:
AMT
É a vez do
jogador A, novamente. Ele olha e pensa “na língua portuguesa, as únicas
consoantes que vêm após o M são o B e o P.” Ou seja, não existe palavra com
essa seqüência. Nesse caso, quando o jogador não sabe a palavra ele tem três
opções:
- Desistir e perder
a mão – Ele simplesmente desiste. Isso pode acontecer quando ele não ache outra
saída que não formar a palavra, ou quando não tem certeza se a palavra existe e
não quer se arriscar a perder dois pontos, impugnando o jogador anterior.
- Impugnar o
jogador anterior – Quando o jogador suspeita da existência da palavra, ele impugna
o jogador anterior. Este deve dizer a palavra que pensou. Se existir o
impugnador perde dois pontos. No caso contrário, o impugnado é quem perde.
- Colocar
qualquer letra e seguir adiante – Este recurso é uma malandragem. Passa-se o
jogo adiante esperando não ser impugnado. O caso é que você pode ter herdado a
herança maldita e o próximo jogar faça a impugnação a você. Nini e César Mello
são os grandes nomes mundiais na utilização desse recurso.
Jogávamos nos
dias em que o bar estava tranquilo, com nossas cervejas e whiskies à mão.
Outros amigos juntaram-se e participaram do jogo (tivemos a ilustre presença de
Décio Trujilo que, como bom jornalista, é um vernáculo ambulante e enriquecia as
disputas).
E foram as
últimas vezes que joguei esse jogo, que tem características peculiares como o
uso do blefe, a preparação de armadilhas imaginando jogadas à frente e, claro,
o conhecimento da língua. Preciso arrumar um parceiro para jogá-lo. Saudades do
Armando.