quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Santa Maria (Tragédia em 3 atos)


1º. Ato
Do riso faz-se a apreensão
Da apreensão, o  tumulto
Espaços se fecham
Corpos se chocam
Gritos enfumaçados
Carne queimando
Desespero
Árdua luta
Ar de  menos
Arde muito
A porta
A saída
A última ilusão de vida

2º. Ato
Os alarmes, alertas,
Bombeiros, mangueiras, água
Os esforços
O doar-se
As tentativas
A parede quebrada
Corre-corre, aflição
Macas, ambulâncias, sirenes
A Esperança
As remoções
Os sobreviventes
As vítimas
O ginásio vazio
O ginásio lotado
O reconhecimento
A dor lancinante

3º. Ato
As manchetes
A repercussão
A comoção social
As entrevistas
O inquérito
[entra um batuque de caixa de fósforos]
As prisões
[Pandeiros, cuíca, reco-reco]
A necessidade de respostas à sociedade
[O samba-enredo, a avenida, os foliões]
...
A tristeza já não cabe mais
É carnaval
Alegria
Nesse dia, ninguém chora.
Na terra de Santa Cruz,
A apoteose é linda.
V. Klenk – 28/02/2013

sábado, 2 de fevereiro de 2013

O Jogo da Taverna


O ano era 1989. Eu trabalhava em um bar no centro de Barueri, mais precisamente, no bar do Rodolfo, que tinha herdado o negócio do pai. No centro, todos conheciam o comércio como “o bar dos italianos”.
Eu fizera uma espécie de arrendamento onde a administração era minha, porém, não era proprietário do negócio. Assim tinha uma participação nos lucros. Já era cliente antes de assumir o bar (fato que ocorreria outras duas vezes na vida) e conhecia bem a clientela.
O local era pequeno,  mas abrigava um parque de diversões para aqueles senhores aposentados que passavam a maior parte do dia na jogatina: Bilhar, truco, caxeta e toda a sorte de jogos de lógica e pegadinhas.  Havia também um público flutuante que frequentava o local para “tomar uma para abrir o apetite (tem uns que tem o apetite difícil de abrir...)”, jogar um pouco ou bater papo.
Dentre os frequentadores, gostaria de destacar três:
Benedito Adherbal Farbo – advogado da câmara, Nini, como era conhecido, costumava passar no local pela manhã, na hora do almoço e entrava na jogatina após o serviço. Tinha currículo extenso: vereador, fundador e proprietário do Jornal D’Oeste, poeta, ator, promotor cultural, fundador do carnaval de rua da cidade, fundador do grupo TEMPO (teatro, música e poesia), tinha 3 livros publicados (sobre a cidade de Barueri), disco gravado (com poesia), mas era, fundamentalmente, um tirador de sarro. O maior que já conheci.  
Sr. Silvério – aposentado. De mente aguda e olhos sempre atentos, Silvério, não perdia nenhum detalhe. Fora secretário municipal na gestão de Guilherme Guglielmo, o Perereca, e um dos responsáveis pela isenção de impostos às empresas que se instalassem no recente bairro de Alphaville. Era o mais erudito. Tocava piano e contava as histórias das óperas e clássicos que colocava para tocar no gravador do bar (ele trazia as fitas gravadas),  sob protesto da maioria.
Armando Torloni – engenheiro – Trabalha em uma empresa na Chácara Marco (que a Benfica insiste em chamar de Marcos) e começou a frequentar o local na hora do almoço. Tomava uma ou duas aguardentes com “uma triscadinha de Cynar para dar cor”. Era muito refinado, na sua simplicidade. Usava corretamente as palavras e falava pausadamente. Dizia-se tio da atriz global Cristiane Torloni.
Não sei quem apareceu com um jogo de palavras que era muito instrutivo, além de ser uma espécie de xadrez de palavras misturado com truco. Creio que o responsável foi o Nini . O fato é que começamos a jogar diariamente. Eu, o Nini e o Silvério. Ríamos muito com as “fechadas de palavras” que dávamos.  Nossa diversão chamou a atenção do Armando que, rapidamente, se juntou ao grupo.
Silvério trouxe um dicionário Lello para dirimir as dúvidas quando as palavras fugiam do vocabulário usual (o que era corriqueiro). Eu comecei a buscar, escondido, palavras “esdrúluxas” para enriquecer meu vocabulário e me armar para as batalhas.   
Passaram-se semanas e o jogo foi perdendo a graça. Pelo excesso. Silvério foi o primeiro que abandonou o jogo, tornando-se observador. Logo depois, Nini resolveu trocá-lo, ora pelo carteado, ora pela sinuca.
Na mão contrária, Armando começou a ficar cada vez mais no bar. Primeiro, começou a estender o horário de almoço, depois, passou a chegar no bar pela manhã e só ia trabalhar depois do almoço.
Eu estava ficando preocupado com ele. Pensava: “Tem mais de 60 anos, se perder o emprego é difícil arranjar outro...”. Não obstante, também estava me enchendo de jogar. Comecei a inventar desculpas ou fazer parceria para alguém que estava querendo jogar sinuca e não tinha adversário (é comum donos de bares fazerem esse “sacrifício” pelo freguês). Armando, recostado no balcão, com voz súplica, pedia para que eu jogasse dali mesmo. Ficava com dó dele e acabava jogando. Ele anotando no papel e eu formando a palavra na minha cabeça, enquanto dava minhas tacadas.
Acabei por sair do bar. Nini, meu guru em sacanear pessoas, faleceu alguns anos depois. Silvério, hoje com quase 90 anos, não sai mais de casa. Umas semanas atrás, eu tive a grata surpresa de incluí-lo como amigo no Facebook (!). O incentivo foi de sua neta que é minha amiga e fizemos peças de teatro juntos.
Armando sumiu. Nunca mais tive notícias.
Uns quinze anos depois, no Cyber bar (que eu viria a ser sócio – é um vício, meu), de propriedade da Keia Mendes, ressuscitei o jogo.  O bar era uma Lan house e casa noturna que tinha seu maior movimento nos finais de semana.
Nessa época, eu e meus amigos Marcelo Arruda, César Mello, Aluísio Reis e Rui Ricardo fazíamos uma espécie de Sarau mensal denominado Noite na Taverna. Quando o “Noite” começou, era apresentado em outro bar, que acabou fechando e a Keia acolheu o evento no seu bar.
Como estávamos muito empolgados dedicávamos muita atenção e esforço ao evento. Criamos o Manifesto do Noite na Taverna e a Canção da Taverna. E, como o jogo de palavras (do Nini) não tinha nome, foi batizado de Jogo da Taverna. E faz todo sentido chamá-lo assim, afinal, é um jogo de bar.
Enfim, para jogá-lo é simples:
Precisa de:
·         Uma caneta
·         Uma folha de papel
·         Dois jogadores ou mais. Quanto mais, melhor.
O jogo é iniciado quando um dos jogadores escreve uma letra em um papel. O jogador seguinte coloca outra e assim por diante. Pode-se colocar letras à esquerda ou à direita. O objetivo é NÃO FORMAR A PALAVRA. Quem  a formar, perde.
Cada mão vale um ponto negativo ao perdedor. Se houver impugnação, o perdedor perde 2 pontos. Quem tiver mais pontos negativos perde o jogo. Deve ser combinada a pontuação final no início do jogo. Só valem palavras da língua portuguesa (pode-se incluir outras línguas, claro). Não valem diminutivos, aumentativos ou nomes próprios (para não empobrecer o jogo). O dicionário diz a palavra final nas contendas.
Exemplo, com três jogadores:
Jogador A coloca a letra M:
   M   
O jogador B coloca a letra A à esquerda:
   AM   
Se o jogador C colocar a letra A à direita ele forma a palavra AMA e perde à mão. Então ele resolve colocar um T depois do M:
   AMT   
É a vez do jogador A, novamente. Ele olha e pensa “na língua portuguesa, as únicas consoantes que vêm após o M são o B e o P.” Ou seja, não existe palavra com essa seqüência. Nesse caso, quando o jogador não sabe a palavra ele tem três opções:
  1. Desistir e perder a mão – Ele simplesmente desiste. Isso pode acontecer quando ele não ache outra saída que não formar a palavra, ou quando não tem certeza se a palavra existe e não quer se arriscar a perder dois pontos, impugnando o jogador anterior.
  2. Impugnar o jogador anterior – Quando o jogador suspeita da existência da palavra, ele impugna o jogador anterior. Este deve dizer a palavra que pensou. Se existir o impugnador perde dois pontos. No caso contrário, o impugnado é quem perde.
  3. Colocar qualquer letra e seguir adiante – Este recurso é uma malandragem. Passa-se o jogo adiante esperando não ser impugnado. O caso é que você pode ter herdado a herança maldita e o próximo jogar faça a impugnação a você. Nini e César Mello são os grandes nomes mundiais na utilização desse recurso.

 Jogávamos nos dias em que o bar estava tranquilo, com nossas cervejas e whiskies à mão. Outros amigos juntaram-se e participaram do jogo (tivemos a ilustre presença de Décio Trujilo que, como bom jornalista, é um vernáculo ambulante e enriquecia as disputas).
E foram as últimas vezes que joguei esse jogo, que tem características peculiares como o uso do blefe, a preparação de armadilhas imaginando jogadas à frente e, claro, o conhecimento da língua. Preciso arrumar um parceiro para jogá-lo. Saudades do Armando.